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Enviada em: 14/09/2017

Ficção machadiana        Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, uma das maiores obras de Machado de Assis, o personagem principal sente-se atraído pela beleza de uma moça que conhecera, mas recua com rapidez quando descobre que esta era "coxa de nascença". O preconceito direcionado aos portadores de variados tipos de deficiência física ainda finca raízes no imaginário individual brasileiro e provoca entraves que, embora pareçam quase latentes, merecem ser colocados em análise crítica.        Antes de debruçar-se à discussão do impasse atual, faz-se essencial atentar a suas motivações originais. No século XIX, Herbert Spencer, sociólogo inglês, usou as teorias de Charles Darwin para elaborar as bases do "evolucionismo social", segundo o qual determinados segmentos coletivos possuiriam características que os tornariam menos adaptados ao convívio - entre eles, figuram os deficientes físicos. Mesmo que as errôneas noções eugenistas tenham sido amplamente refutadas, seus resquícios permanecem vivos contemporaneamente, estimulados pelo crescente utilitarismo pós-moderno. O pensador polonês Zygmunt Bauman, ao teorizar a "modernidade líquida", já apontava para configurações sociais fluidas, em que o contato e a solidariedade estão solapados.        Desse modo, sociedades cada vez mais marcadas por concepções pragmáticas começam a sinalizar consequências nocivas às interações, como a negligência para com os portadores de necessidades especiais. Além da discriminação, transmitida quase que hereditariamente no Brasil, tais grupos enfrentam obstáculos concretos diariamente: o principal deles, a falta de acessibilidade, parece imutável. Ambientes educacionais, ruas, calçadas e veículos de transporte coletivo são exemplos claros da escassa adaptação social e comprovantes do despreparo coletivo frente à criação de possibilidades reais de uma democracia geral e plena, em que todos possam exercer seus direitos mais básicos.        Assim sendo, ficam evidenciadas as complexidades mais preocupantes, derivadas da marginalização do deficiente no Brasil. Nesse sentido, escolas e famílias precisam ser aliadas no ensino da necessidade da responsabilidade inclusiva e dos prejuízos dos preconceitos de qualquer gênero, através de diálogos, debates e palestras, em que portadores de necessidades especiais contem seus cotidianos. Por sua vez, ONGs podem, com o apoio da mídia, divulgar campanhas inteligentes e engajadas, que estimulem, a curto prazo, as comunidades a pressionar o governo a realizar, por órgãos de gestão pública, reformas nas cidades e instituições sociais do país. O caminho a ser trilhado rumo a equidade é longo, mas é necessário para tornar situações como a de Brás Cubas unicamente ficção.